Perdigão, R.A.P. (2022): Sistemas de Inteligência em Física Interdisciplinar: Discernindo a Complexidade para Navegar as Águas Turbulentas dos Nossos Tempos. DOI: https://doi.org/10.46337/div.220314.
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Arquivo de autor. Divulgação na SIC Notícias em 2022.03.21.
Abrindo qualquer jornal, revista ou rede social, saltam invariavelmente à vista sinais de tempos conturbados nas mais diversas esferas da nossa existência enquanto sociedade, enquanto humanidade, enquanto planeta. De imediato, surgem duas formas de reagir: ou alimentar a retórica catastrofista com argumentação visceral, radical e inflamada que não ajuda em nada, ou respirar fundo e procurar formas de contribuir construtivamente para abordar eficazmente os problemas. A nossa conversa de hoje posiciona-se nesta segunda forma.
Quando emergem crises de saúde pública, de escalada bélica de conflitos geopolíticos, de desastres naturais e não tão naturais assim, há sempre quem esteja na chamada linha da frente, combatendo arduamente no terreno. Seja no tratamento de urgência aos enfermos, seja no combate contra forças adversárias em operações militares, seja no combate às chamas, no resgate a náufragos ou de vítimas soterradas sob escombros, para citar apenas alguns exemplos.
Por trás da linha da frente, há todo um sistema de suporte fundamental para poder capacitar quem está no terreno com informação crucial ao cumprimento mais seguro e eficaz da nobre missão que lhes é confiada. Nos bastidores de tais missões, pelo menos das apropriadamente executadas, estão geralmente centros de monitorização, análise, previsão e suporte à decisão, apoiando as entidades responsáveis pela prevenção, gestão e ação relativa à proteção civil e a operações militares, prestando ainda apoio à preparação, coordenação e execução de missões multissectoriais.
É aí que nos movemos, desenvolvendo e operando sistemas de inteligência na interface complexa entre as valências naturais, sociais e tecnológicas, e nos mais variados contextos, incluindo relacionados com os sistemas que vos partilhei anteriormente relativos à monitorização do fundo do oceano às profundezas do Espaço com tecnologias quânticas (Perdigão 2021A), aos avanços quânticos nas ciências da complexidade (Perdigão 2021B), aos sistemas de informação aliando o quantum ao não-linear (Perdigão 2022). Contextos diversos, com um objetivo fundamental: produzir instrumentos, métodos e modelos para capacitar e proteger aqueles que estão na linha da frente a operacionalizar a missão de todos nós.
Os nossos sistemas de inteligência abordam ainda a complexidade coevolutiva inerente à nossa condição humana e relação com o mundo: articulando as nossas interações multi-escala entre indivíduos, famílias, comunidades, sociedades, ecossistemas, biomas, sistema climático e sistema dinâmico planetário em geral. O entrosamento coevolutivo dinâmico entre cada um de nós e tudo o que nos rodeia, do imediato ao remoto, do local ao global, apimenta o nosso mundo com uma complexidade com tanto de fascinante como de desafiante.
NATUREZA DA COMPLEXIDADE
A complexidade de um sistema não surge do número de componentes, de processos em ação, mas sim da não-linearidade e irreversibilidade das interações. Tecnicamente, não se trata do número de variáveis, mas de quão “retorcidas” e entrosadas são as formulações que representam as interações. Por exemplo, um milhão de partículas soltas e independentes entre si não constitui um sistema complexo. Mas meia dúzia de elementos entrosados entre si, afetando-se mutuamente e coletivamente, esses sim produzem comportamentos coletivos emergentes sinérgicos, que transcendem a soma de comportamentos individuais, sem todavia perder a informação multi-escala desde o indivíduo ao sistema global.
Tal condição sistémica pode emergir por exemplo através do entrosamento entre sócios que formam uma empresa, deles emergindo uma nova estrutura constitutiva com características próprias e que norteia a governança do sistema, condicionando ainda nesse âmbito a interação dos sócios constituintes. Bem como através do entrosamento entre quarks (dois “up”, um “down”) na constituição de um protão como entidade coletiva emergente manifestando características físicas ausentes nas partículas elementares que o compõem e condicionando a forma como se relacionam entre si a bem da existência do protão como um todo coeso. Ou na coevolução funcional-estrutural inerente ao nosso mundo em geral, envolvendo uma complexa articulação entre as dinâmicas naturais do meio ambiente, as dinâmicas sociais como sejam as relativas à economia, à legislação, à cultura, aos valores, aos afectos, e ainda as dinâmicas infraestruturais como sejam as relativas ao meio construído, industrial, tecnológico, incluindo ainda os sistemas de produção primária.
PARADIGMAS DE ANÁLISE E MODELAÇÃO
Muito embora cada contexto seja dotado das respetivas especificidades, é possível analisar e modelar a forma como diferentes contextos podem articular-se num todo sistémico. A mais tradicional e limitada consiste na aferição de relações estatísticas entre os processos intervenientes, vendo por exemplo qual a probabilidade condicionada de cada processo relativamente ao comportamento dos demais e construindo assim uma rede de inferência. Se por um lado permite ter uma ideia global da relação entre processos intervenientes, por outro lado não faculta informação detalhada sobre a dinâmica propriamente dita nem dos mecanismos subjacentes, ficando sempre refém da arbitrariedade na escolha de períodos de referência para análise.
Mais detalhado e refinado é o tratamento cinemático-geométrico dos sistemas, aferindo as relações geométricas entre as dinâmicas das variáveis intervenientes com vista a deduzir fórmulas que traduzam a sua interação. O que na prática se traduz geralmente em construir uma representação do sistema num espaço multidimensional, com tantos “eixos” quanto o número de variáveis mais o das respetivas taxas de variação (espaço de fases). Dali podem ser geometricamente deduzidas as funções que acoplam a taxa de variação de cada variável com ela própria, com as demais variáveis e respetivas taxas de variação, produzindo uma representação formal da dinâmica do sistema nos termos assim elencados. Este procedimento pode ser feito sobre sistemas dinâmicos clássicos, quânticos ou estocástico-dinâmicos modelando a evolução de sistemas cuja dinâmica intrinsecamente navega pelas águas turvas entre o determinismo e a aleatoriedade.
Tanto no caso estatístico como no caso dinâmico, as relações de interação deduzidas por acoplamentos de índole estatística ou cinemático-geométrica têm poder informativo e representativo no âmbito do domínio em que se move a informação que lhe serviu de base. Dito isto, os padrões, acoplamentos e demais características funcionais e estruturais deduzidas a partir de tais abordagens valem o que valem, sendo sempre condicionados às amostras disponíveis para análise e modelação.
Trata-se do paradigma de modelo inverso, em que as “regras” do sistema são deduzidas a partir de dados disponíveis, desde uma visão estática agregada da informação recolhida como sucede na estatística tradicional, ou uma progressão na formulação de padrões e demais estruturas como sucede nas abordagens cinemático-geométricas, ou combinando estas abordagens em protocolos operacionais de modelação estatístico-dinâmica, de aprendizagem máquina e inteligência artificial.
Por contraponto de complementaridade relativamente ao paradigma de modelo inverso, existe o paradigma de modelo direto. Aqui, a conceptualização do modelo que visa representar determinado sistema emerge de um conjunto de premissas, hipóteses, assunções, princípios que traduzem um suposto conhecimento prévio acerca do sistema, das variáveis que o compõem e das respetivas interações. A conceptualização pode assim nascer de forma puramente conjectural ou dedução matemática, construindo determinado modelo sem qualquer base empírica, e aferindo depois a sua efetiva representatividade através da confrontação com dados observacionais.
A modelação pode ainda ser baseada numa combinação entre base puramente teórica e experiência de lidar com problemas parecidos, o que neste caso acaba por incluir modelação inversa, na medida em que tal experiência configura efetivamente uma aquisição de informação a partir da qual é deduzida a formulação do modelo. Nesta fusão implícita de modelação inversa e direta encontramos os modelos de base física mais tradicionais, porquanto têm a sua génese na observação, análise e experimentação mas também se aventuraram por caminhos puramente teóricos, explorando possibilidades matematicamente lógicas ainda que fisicamente ainda não observadas aquando da sua formulação.
É particularmente gratificante quando várias de tais aventuras e deduções teóricas acabam por encontrar eco em observações ou experiências muito posteriores, mesmo tomando em consideração a enorme complexidade e incerteza associada aos fenómenos em causa. Em todo o caso, quem como nós desenvolve novas teorias, métodos e modelos, está ciente de que em complexidade, nem tudo o que parece, é.
EM COMPLEXIDADE, NEM TUDO O QUE PARECE, É
Aqui, importa notar que o poder representativo de modelos em reproduzir ou inferir o comportamento de determinado sistema não implicam causalidade real entre os intervenientes, na medida em que pode haver outros processos e interações que, não tendo sido contemplados, possam todavia facultar semelhantes resultados. Por exemplo, o facto de se construir um modelo que representa bem um fenómeno com base num conjunto de mecanismos X a ponto de coincidir com as observações não significa que não haja outro modelo igualmente válido e rigoroso que reproduza exatamente o mesmo fenómeno mas com base num conjunto totalmente diferente de mecanismos Y.
Efetivamente, na ciência da atribuição e causalidade não basta mostrar que uma teoria concorda com as observações. É necessário mostrar que as teorias alternativas não funcionam, senão estamos na presença de um indício circunstancial e não de uma prova concreta. O facto de uma luva assentar bem a uma mão não faz desta dona da luva, porquanto pode haver outra mão que assente de forma equivalente.
Tal como explicámos num artigo científico publicado na revista Science (“Who is stirring the waters?”, por Hall e Perdigão 2021), os diagnósticos de atribuição e causalidade tradicionalmente utilizados pela comunidade científica são norteados por métricas meramente estatísticas, conjunturais ou por exercícios de modelação e comparação que, embora úteis em termos indiciais, na prática são meramente circunstanciais, o que se traduz numa fragilidade que urge colmatar. Nesse sentido, a robustez e credibilidade de tais esforços devem ser alavancadas com o desenvolvimento de novas ferramentas metodológicas mais fiáveis e consistentes.
Isto traz-nos à Física desenvolvida no seio da minha cátedra interuniversitária e de que vos falei anteriormente aqui na SIC Notícias (Perdigão 2021) alusiva aos Saltos Quânticos nas Ciências da Complexidade. Recordando o que então referi:
“A Física de Sistemas Coevolutivos Complexos faculta um edifício conceptual, formal e operacional de análise, modelação e ação por forma a articular a informação nas suas mais diversas facetas e interações, desde a escala micro de processos individuais e respetivas interações multi-escala até chegar à macro do sistema como um todo. Ao o fazer, articula os saberes – e sabores – das várias áreas e contextos envolvidos, com a inteligência sistémica endémica a tudo o que existe e se manifesta no nosso cosmos, incluindo o caos e as incertezas associadas, que também fazem parte da vida do sistema.” (Perdigão 2021)
É aliás essa inteligência sistémica de base fenomenológica natural que, na nossa limitada condição humana, temos tentado reproduzir e escalar em mecanismos operacionais automáticos de análise e processamento da informação em que se inserem tecnologias como a inteligência artificial e a hibridação tecnológica entre esta e os modelos de base física.
MECANISMOS DE INTELIGÊNCIA TECNOLÓGICA
De entre a diversidade de competências operacionais de tais sistemas tecnológicos, estes permitem analisar vastos volumes de informação, organizá-la em classes de equivalência em função dos atributos manifestados nos dados disponíveis, dali extraindo automaticamente padrões, e refinando o processo de forma adaptativa à medida que adquire mais informação. De tal processo emergem de forma bastante expedita modelos matemáticos relacionando as variáveis cujas propriedades e interações se manifestaram nos dados analisados, ajudando a detectar simetrias e padrões de variabilidade, bem como a inferir comportamentos do sistema com base nas estruturas funcionais deduzidas a partir de tais padrões e simetrias.
Nesta medida, os sistemas de inteligência tecnológica permitem operacionalizar, agilizar e massificar a aplicação do paradigma de modelo inverso à análise e modelação de sistemas complexos, tanto para investigação como previsão e suporte à decisão. Todavia, sem prejuízo da sua enorme utilidade operacional, estas tecnologias não representam necessariamente a plenitude natural, na medida em que nós, humanos que as construímos, não temos a compreensão plena do sistema de inteligência natural do qual fazemos parte, designadamente o nosso cosmos.
Assim, a inteligência artificial e outras variantes puramente tecnológicas apenas podem aprender, processar e evoluir no âmbito das competências cognitivas que lhe são facultadas aquando da concepção e programação dos respetivos protocolos de operação, por mais dinamicamente adaptativos que sejam. Ou seja, tudo depende do “cérebro artificial” que construímos, que tem muito para dar mas não faz milagres. Para o fazermos tão inteligente como o nosso cérebro natural, teríamos primeiramente de atingir uma compreensão plena do seu funcionamento.
Portanto, é fundamental a Ciência evitar demitir-se das suas valências naturais, ou seja, evitar depositar inteiramente na inteligência artificial a sua progressão. Continua a ser essencial ler, sentir e interagir com a natureza, pois é nela que jaz a plenitude da informação, mesmo aquela que a humanidade não consegue alcançar nem discernir. É isso que tentamos fazer com uma inteligência de base física tecnológica que não escamoteia a base fundamentalmente natural, física, da informação no seu cerne.
Cientes disto, tentamos aliar o melhor de dois mundos, designadamente a ciência de base natural com o tomar partido de tecnologias de aprendizagem e cognição automáticas como as existentes nos protocolos de inteligência artificial. O que, sendo crucial na construção conceptual e operacional de modelos com que se tenta simular a realidade, não se substitui à mesma realidade. Mas permite trabalhar e aprender com ela. E produzir resultados diretamente relevantes nas mais diversas aplicações científicas e operacionais que permeiam por todos os sectores da sociedade.
Este trabalho de bastidores pode não ser tão visível como estar na linha da frente, pode não estar necessariamente ao leme das operações no terreno, mas ajuda a navegar pelos meandros dos tempos turbulentos que vivemos. Alicerçando de forma robusta e eficaz qualquer operação no terreno, porquanto a resolução concreta dos desafios da complexidade requer ciência interdisciplinar de sólida base matemática que articula as várias áreas do saber e do sentir. Fazendo-o com a flexibilidade, robustez e isenção dessa lingua franca que nos permite trabalhar e comunicar de forma universal de modo a capacitar a ação necessária para o cumprimento eficaz das missões que nos são confiadas. Estamos de braços abertos para acolher quem connosco queira colaborar entusiasticamente nesta missão. Bem hajam.